Nas aulas de Matemática, os jogos ajudam a criar contextos de aprendizagem significativos. Mas é preciso acertar na escolha e compreender como os indivíduos se relacionam com o jogo. A especialista Ana Flávia Alonço Castanho discute o assunto. E você aprende mais sobre jogos
1. Contribuição do jogos para apredizagem
Trabalhar com jogos nas aulas de Matemática é uma das
situações didáticas que contribuem para a criação de contextos significativos
de aprendizagem para os alunos. Esta descoberta se deu no conjunto de uma série
de transformações que o ensino experimentou nas últimas décadas, desde que
professores e instituições passaram a pautar sua prática por uma concepção de
aprendizagem segundo a qual aprender significa elaborar uma representação
pessoal do conteúdo que é objeto de ensino - quando os alunos constroem conhecimentos
em um processo ativo de estabelecimento de relações e atribuição de
significados.
Ensinar passou a ser compreendido como criar condições
adequadas a esse processo e à realização de intervenções com vistas a
possibilitar avanços aos alunos. Com isso, novos critérios passaram a ser úteis
para a tarefa do professor, como: organizar o ensino em torno de
situações-problema que façam sentido para os estudantes e tornem necessária a
construção ou reelaboração de conhecimentos para sua resolução; estabelecer
relações com os fazeres que caracterizam o trabalho de uma determinada área de
conhecimento; compreender as práticas culturais de uso de um determinado saber
e as formas como os indivíduos, em geral, se relacionam com elas.
É nesse contexto que o jogo passa a ser uma presença mais
constante nas aulas de Matemática. Mas a experiência tem indicado que a
presença do jogo, por si só, não leva à aprendizagem dos alunos. Por isso,
vamos discutir nos capítulos seguintes que condições podem fazer do jogo um
aliado do professor na organização de boas situações de aprendizagem. O ponto
de partida é compreender o jogo como uma prática humana e social de relação com
o conhecimento.
2. As instâncias do jogo e sua relação com o conhecimento
Macedo (2003) discute em seu texto "Os jogos e sua importância na escola" como o jogo está, segundo a tteoria piagetiana,
intimamente ligado ao processo de desenvolvimento humano (acima, veja
um vídeo em que o professor fala sobre o uso dos jogos na aprendizagem)
Nessa perspectiva, o desenvolvimento de cada indivíduo é marcado por três grandes instâncias de jogo: os jogos de exercício,
em que a assimilação de novos conhecimentos, sobre si e sobre o mundo
que o cerca dá-se na forma do prazer pela repetição dos primeiros
hábitos; o jogo simbólico, em que a criança se apropria
de conhecimentos sobre o mundo e conhece mais sobre si a partir da
atribuição de diferentes significados aos objetos e as suas ações - em
fantasias, em faz-de-contas ou na possibilidade de viver diferentes
histórias; e os jogos de regras, em que o "como fazer"
do jogo é sempre o mesmo, regulamentando uma interação entre pares -
nesses jogos, a criança se depara com o desafio de se apropriar das
regras e encontrar estratégias para vencer dentro do universo de
possibilidades criado pelo jogo.
As três instâncias de jogo são
parte de cada um de nós, parte de nossa história pessoal e da nossa
relação com o mundo e, por isso, em maior ou menor grau, continuam
presentes ao longo de nossas vidas:
"Compreender melhor, fazer
melhores antecipações, ser mais rápido, cometer menos erros ou errar por
último, coordenar situações, ter condutas estratégicas etc. são chaves
para o sucesso. Para ganhar é preciso ser habilidoso, estar atento,
concentrado, ter boa memória, saber abstrair, relacionar as jogadas todo
o tempo" (Macedo. Os jogos e sua importância na escola, 2003).
3. A relação entre os homens e o jogo
A
relação do homem com o jogo, enquanto prática cultural, remonta ao
início de sua história. A espécie humana, em todas as épocas e em todas
as culturas, construiu muitas e variadas formas de jogar, permitindo,
tanto aos mais novos se apropriarem de saberes culturais importantes -
muitas vezes essenciais para sua inserção naquela determinada sociedade
-, quanto aos já adultos usufruírem de um espaço de lazer e descanso.
Alguns
desses jogos envolvem conhecimentos que são alvo da preocupação da
escola hoje, como a contagem, presente nos mais variados jogos de
percurso, o cálculo mental, necessário para vencer no "sjoelback" (ou bilhar holandês) ou no "Flecha a Caixa",
a localização espacial presente nos jogos de batalha naval. Mas, embora
o próprio processo de desenvolvimento humano crie condições para a
compreensão dos jogos de regras, as características do jogo, enquanto
objeto cultural que remete aos momentos de diversão e lazer, fazem com
que a relação de cada um com os jogos de circulação social seja regida
por preferências pessoais e contextos de convivência.
Assim,
embora existam jogos que ponham em evidência conhecimentos valorizados
pela escola, não é esperado, socialmente, que todos joguem bem todos os
jogos nem que todos superem suas dificuldades iniciais e se apropriem de
estratégias para jogar bem esses jogos.
Dessa forma, há uma
primeira dificuldade na relação da escola com os jogos, pois a
experiência social deixa claro que, na ausência de uma intervenção
sistemática, pautada em preocupações e compromissos educativos, se
perpetua a divisão entre bons e maus jogadores. E a escola nunca pode
naturalizar a divisão entre bons e maus alunos, sob pena de não ser mais
escola.
4. O jogo como via de acesso ao conhecimento
A despeito dessa dificuldade em relacionar as características de um
objeto cultural de lazer e entretenimento com as preocupações escolares,
muitos estudiosos defendem a presença do jogo na escola, argumentando
que para a criança em idade escolar, o jogo, nas suas diferentes formas,
é uma excelente via de acesso a novos conhecimentos, porque além de
tornar significativo o encontro com novos saberes, também cria um
contexto em que se apoderar desses conhecimentos tem uma razão mais
próxima do ponto de vista infantil - ir bem no jogo - , além da razão
que a escola sempre lhe apresenta, que é preparar-se para a vida futura.
Segundo
Ortiz (2005), um estudioso espanhol desse tema, as próprias
características do jogo o constituem como um excelente veículo de
aprendizagem e comunicação, especialmente para as crianças, que têm a
oportunidade de envolver-se com a própria aprendizagem, participando
ativamente de todo o processo educativo. Esse autor ressalta que o
acesso ao jogo ao longo do processo educativo é considerado, hoje, um
direito inalienável, segundo a Declaração Universal dos Direitos das
Crianças:
"A criança desfrutará plenamente do jogo e das diversões, que deverão estar orientados para finalidades perseguidas pela educação; a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover o cumprimento desse direito" (Ortiz, J. P. Aprendizagem através do jogo).
"A criança desfrutará plenamente do jogo e das diversões, que deverão estar orientados para finalidades perseguidas pela educação; a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover o cumprimento desse direito" (Ortiz, J. P. Aprendizagem através do jogo).
Assim, pode-se considerar que dar ao jogo um justo
lugar dentro da escola, relacionando-o com conteúdos importantes de
aprendizado, é uma forma de respeitar o modo como as crianças aprendem,
dando a todos os alunos a chance de se relacionar com o conhecimento de
uma forma mais prazerosa, significativa e produtiva.
Mas, o que
significa dar ao jogo "um justo lugar dentro da escola"? Uma primeira
resposta é a que já foi apontada acima: criar condições para que todos
os alunos aprendam, para que o jogo seja uma instância que favoreça o
avanço de seus conhecimentos. Outra resposta, imprescindível, também, é
que o jogo se relacione com os objetivos curriculares e as necessidades
de aprendizagem dos alunos. Ou seja, dar ao jogo seu justo lugar dentro
da escola implica perguntar se o jogo em questão cria condições para as
aprendizagens específicas que se quer promover.
5. O jogo como recurso para realização de objetivos curriculares
Para
que o trabalho com jogos matemáticos na escola possa se constituir como
base para uma boa relação com o conhecimento, é preciso ter em mente
que:
"O jogo é, por natureza, uma atividade autotélica, ou seja,
que não apresenta qualquer finalidade ou objetivo fora ou para além de
si mesmo. Nesse sentido, é puramente lúdico, pois as crianças precisam
ter a oportunidade de jogar pelo simples prazer de jogar, ou seja, como
um momento de diversão e não de estudo. Entretanto, enquanto as crianças
se divertem, jogando, o professor deve trabalhar observando como jogam.
O jogo não deve ser escolhido ao acaso, mas fazer parte de um projeto
de ensino do professor, que possui uma intencionalidade com essa
atividade" (Ana Ruth Starepravo. Jogando com a Matemática: números e operações).
A
ideia de que "o jogo não deve ser escolhido ao acaso" é a marca
fundamental do trabalho escolar. É imprescindível - se se quer fazer do
jogo um contexto de aprendizagem - perguntar-se sobre o que o jogo
permite ensinar, sobre qual conteúdo matemático é posto em destaque no
jogo, sobre como isso se relaciona com as necessidades de aprendizagem
dos alunos naquele momento, sobre que outras situações de ensino
podem-se articular às situações de jogo, sobre como sistematizar e
institucionalizar o conhecimento posto em ação e, com isso, relacioná-lo
às aprendizagens previstas no currículo.
A intencionalidade do
professor, tão bem apresentada nas palavras de Ana Ruth Starepravo, é a
marca que distingue as situações de jogo vividas no meio social e as
situações escolares de aprendizagem a partir do jogo. Para fazer valer
essa intencionalidade, é fundamental que o professor parta das
estratégias de cálculo utilizadas inicialmente pelas crianças em suas
jogadas, de seus procedimentos, de suas dúvidas e acertos e planeje
atividades e intervenções desafiadoras a partir disso, a fim de que seus
alunos possam avançar nos conhecimentos em questão.
Esse espaço
para intervenção do professor que o trabalho com jogos matemáticos
possibilita é precioso, segundo Cecília Parra. Esta autora aponta que um
trabalho intencional e reflexivo, por parte dos professores, com jogos
na aula de Matemática permite "maiores oportunidades de observação, a
possibilidade de variar as propostas de acordo com os níveis de trabalho
dos alunos e inclusive de trabalhar mais intensamente com aqueles que
mais o necessitam". Ou seja, é a partir da intervenção do professor que
os jogos matemáticos se transformam em contextos de aprendizagem para os
alunos.
Isso ocorre nas ocasiões em que o professor organiza
sequências de atividades a partir do jogo, de forma que os alunos
possam: tomar consciência do que sabem; reconhecer a utilidade
(economia, segurança) de utilizar determinados recursos (resultados
memorizados, procedimentos etc.); ter uma representação do que se deve
conseguir e do que precisa saber; "medir" seu progresso; escolher, entre
diferentes recursos, os mais pertinentes; serem capazes de fundamentar
suas opções, suas decisões; estabelecerem relações entre os
conhecimentos postos em destaque no jogo e os conhecimentos escolares.
Assim,
o que caracteriza o jogo como contexto de aprendizagem escolar é que na
escola, diferentemente da vida social, o jogo não se encerra em si
mesmo, não se justifica apenas pelo seu aspecto lúdico e, sim, é parte
de uma sequência intencional de ensino, que contextualiza a resolução de
problemas e o desenvolvimento de estratégias que se relacionam com o
desenvolvimento de aprendizagens importantes de uma determinada etapa;
que respeita os diferentes ritmos de aprendizagem das crianças, mas se
compromete com o avanço de todos e a conquista de um conjunto
compartilhado de saberes. E isso só é possível com a intervenção atenta e
cuidadosa de um professor que sabe aonde quer chegar.
Quer saber mais?
Ana Ruth Starepravo. Jogando com a Matemática: números e operações. Curitiba: Ed. Aymará, 2009.
Cecília Parra. "Cálculo Mental na Escola Primária". In: Parra, C. & Saiz, I. Didática da Matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artmed, 1996.
Macedo, L. Os jogos e sua importância na escola. In: Macedo, L., Petty, A. L. S. e Passos, N.C., Quatro cores, senha e dominó. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
Ortiz, J. P. In: Múrcia, J.A.M. (e col.). Aprendizagem através do jogo. Porto Alegre: Editora Artmed, 2005.
Cecília Parra. "Cálculo Mental na Escola Primária". In: Parra, C. & Saiz, I. Didática da Matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artmed, 1996.
Macedo, L. Os jogos e sua importância na escola. In: Macedo, L., Petty, A. L. S. e Passos, N.C., Quatro cores, senha e dominó. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
Ortiz, J. P. In: Múrcia, J.A.M. (e col.). Aprendizagem através do jogo. Porto Alegre: Editora Artmed, 2005.